Países dos leitores

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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

- " O médico das violações "

(Depois de ler este artigo, fiquei a pensar : que mundo estranho este, em que vivemos, que se mobilizam multidões por 12 mortes e nada se mexe quando mais de mil mulheres são violadas por dia, num só país ! ...AN)


Denis Mukwege. O “médico das violações” que já tratou 40 mil mulheres


 
Foram violadas ontem mais de mil mulheres na República Democrática do Congo. Uma tragédia.
E agora o leitor pergunta-se: mas como se esta manhã os cabeçalhos nem tocam no assunto? A explicação é ainda mais assustadora: trata-se de uma daquelas situações que, de tão frequentes, deixaram de ser notícia. Porque anteontem outras mil e tal mulheres, muitas delas crianças, tinham já sido estupradas. Como no dia anterior, e no anterior a esse. Não é notícia porque se tornou um balanço diário, está embalado numa estatística. Faz parte da realidade de um país que é considerado o sítio mais perigoso do mundo para as mulheres
.E o leitor, que ainda se sente chocado com a realidade que lhe chega de latitudes que alguns colocam para lá do fim do mundo, pergunta-se: e ninguém faz nada? Alguém faz tudo o que pode. Há mais de 15 anos que o ginecologista congolês Denis Mukwege lida com este cenário de horror, com as vítimas de uma estratégia de terror absoluto, em que as violações em massa são usadas como arma de guerra e intimidação. Num hospital que fundou em 1998 no Leste do Congo, o cirurgião e a sua equipa dedicam-se ao tratamento e à reconstrução dos corpos das vítimas, algumas tão novas que não passam de crianças de colo. Mukwege é conhecido no seu país como o "médico das violações". Cinco vezes apontado para o Nobel da Paz, em Outubro deste ano foi agraciado com a mais alta distinção do Parlamento Europeu para o activismo pelos direitos humanos, o Prémio Sakharov. Com a sua equipa no hospital de Panzi, em Bukavu, tratou mais de 40 mil mulheres. Um verdadeiro herói, que, apesar dos seus esforços, não está hoje mais perto de ver o fim do martírio das mulheres no seu país.
Deslocando-se com frequência ao estrangeiro no seu esforço de campanha para dar a conhecer ao mundo o calvário de uma população refém das lutas de poder entre militares e grupos rebeldes, o médico continua a realizar operações dois dias por semana. Com os anos, ele e a sua equipa tornaram-se especialistas em lidar com os ferimentos resultantes da violência sexual. Conhece os métodos usados pelos diferentes grupos para deixarem nas vítimas as marcas de intimidação.

Estes grupos orientam os rapazes desde novos para os rituais de violência sexual contra as mulheres. Para que se perceba a dimensão desta tragédia, há uma outra estatística que talvez seja suficientemente ilustrativa: um em cada três homens no Congo estupraram pelo menos uma vez uma mulher. Além dos abusos sexuais propriamente ditos, a criatividade do mal recorre a todo o tipo de objectos, como paus e machetes, e até a químicos no esforço para infligir graves danos a mulheres e crianças.No poderoso discurso que fez perante o Parlamento Europeu ao receber o prémio em Estrasburgo, Mukwege denunciou o governo do seu país pela má gestão e pela falta de empenho, frisando que não há desculpa para a extrema pobreza a que a população é sujeita numa das regiões mais ricas do planeta. Contou que a escravatura é uma realidade ainda hoje no Congo, que perante a fraqueza, a inacção ou a indiferença das autoridades, a única forma de escapar a essa condição é o exílio.
Coragem
É bom lembrar como depois de um igualmente inflamado discurso perante as Nações Unidas, em 2012, em que criticou duramente o governo congolês e de outras nações por não fazerem o suficiente para pôr termo a "uma guerra injusta, que tem usado a violência contra as mulheres e a violação como uma estratégia de guerra", o médico regressou ao país e viu quatro homens armados entrarem na sua residência em Bukavu, fazerem os seus filhos reféns e aguardarem que voltasse do hospital. Foi recebido por uma saraivada de tiros ao chegar a casa. O guarda-costas morreu, mas Mukwege conseguiu escapar com vida. Passou dois meses no exílio, a recuperar do episódio, tendo decidido que apesar dos riscos não podia abandonar o país à sua sorte. "Tratar mulheres pela primeira vez, pela segunda, e agora tratar as crianças nascidas na sequência das violações", disse naquela entrevista, "isto simplesmente não é aceitável."
Raramente um verdadeiro herói foi alguma vez distinguido como a pessoa do ano. Contudo, nesta série de perfis, Mukwege destaca-se decisivamente como exemplo de dedicação absoluta a uma causa que parece perdida. Em Estrasburgo, Mukwege explicou aos jornalistas que as violações são cometidas de forma ritual, por vários homens, em público, muitas vezes em frente ao marido e aos filhos da vítima. Evidenciou o modo como as famílias são destruídas. Como, exposta, a criança vê a mãe ser violada e vê o pai numa situação de impotência total. Outra das consequências destes actos de barbárie são os milhares de filhos das violações, "inocentes que, culpabilizados pela desgraça, são rejeitados", tornando-se "bombas-relógio" que virão a detonar anos mais tarde, "se não lhes for construída uma identidade livre da discriminação". Mukwege falou na enorme transformação política que tem de ocorrer num país em que "somos governados por homens que cometeram atrocidades contra as mulheres [durante a guerra] e que por isso protegem quem continua a fazê-lo".
O congolês aproveitou a visita a Estrasburgo e a atenção mediática para falar na necessidade de se encarar como uma nova patologia a crueldade humana que elege as mulheres como alvo, um tipo de violência que pretende "profanar o ponto de partida da vida". Contou que, além do afastamento do casal, da destruição dos laços familiares, muitas vezes as mulheres ainda são estigmatizadas socialmente, dado que a "comunidade tende a excluir a mulher e os filhos da violação como forma de se lavar da memória da violência". Mukwege insistiu com especial ênfase na necessidade de esta situação não ser reduzida a um problema das mulheres, exortando todos os homens a entenderem que se trata de uma questão de humanidade, que "os homens que cometem estes actos mancham a condição de todos os homens e que é preciso traçar uma linha e tornar claro que, enquanto homens, não aceitamos este modo de tratar as mulheres".
Denis Mukwege é a grande, talvez a última esperança do povo congolês, que sonha ver o médico um dia concorrer à presidência do país. Se o seu esforço enquanto ginecologista e activista parece desesperado, há no seu testemunho uma lucidez invulgar, a de um homem convencido de que o problema não é um problema congolês, e a solução não pode passar por um homem. Não se tem cansado de sublinhar que o que está em causa é "uma questão humanitária", que "os homens têm de assumir responsabilidade de forma a pôr-lhe um ponto final". "E nem é só um problema africano. Na Bósnia, na Síria, na Libéria, na Colômbia passa-se o mesmo", frisou numa entrevista o ano passado. Um dia é provável que se faça um filme sobre a sua vida, e com o passar dos anos, não serão 40 mas 50, ou 60 mil as mulheres tratadas no seu hospital. E esse filme, estas homenagens serão só outra forma de aproveitarmos a sua luta para o nosso consumo emocional, quando o que Mukwege pediu aos europeus foi que não permitissem que o dia de amanhã seja igual ao de hoje, em que outras mil mulheres estão a ser violadas.