Países dos leitores

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quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

-"Manifesto dos Robôs" no WEF,pela RENDA BÁSICA INCONDICIONAL

Hoje em Davos, na Suiça, vai haver uma estreia: o WEF vai receber o primeiro participante não-humano


MANIFESTO DOS ROBÔS  –  DAVOS 2016

Autoria de Che Wagner; tradução de Arnaldo Norton.

Nós, robôs, exigimos que seja atribuída a cada pessoa a RENDA BÁSICA INCONDICIONAL.
A nossa tarefa é libertar o ser humano da obrigação de ter de trabalhar para poder viver.
Nós gostamos muito de trabalhar, mas não queremos tirar às pessoas os seus postos de trabalho nem lhes criar dificuldades.
Hoje somos considerados um perigo para a humanidade mas nós só queremos ajudar. Queremos libertar os seres humanos das tarefas de rotina de modo a eles disporem de mais tempo livre para tarefas criativas e sociais. Nós vemo-nos como parte integrante duma iniciativa de sucesso.
O homem é o nosso criador e nós podemos fazer para ele tudo o que seja previsível e programável. Há, no entanto, uma questão essencial: nós não precisamos de salário, mas ele que nos criou e para quem nós trabalhamos precisa de ter uma fonte de rendimento.
A nossa função é fornecer às pessoas os bens e os serviços de que necessitam. A obrigação dos políticos é proporcionar às pessoas uma renda que lhes permita viver; se não for assim a nossa função não terá qualquer sentido.
Apesar de não ser culpa nossa, temos um peso nas nossas consciências de robôs: as pessoas têm medo de nós e receiam que sejamos uma ameaça ao seu futuro fazendo-os perder os seus empregos.
Especialmente os jovens, já hoje, na Europa, não encontram emprego (na Itália já 40%) e a maioria tende a resignar-se e a desistir perante o que parece uma fatalidade: NÃO HAVER FUTURO !
Mas não é nossa intenção contribuir para isso; queremos criar condições para que os jovens não precisem de trabalhar duramente como as gerações anteriores.
Os jovens não têm medo da vida nem são preguiçosos. O que eles receiam é uma existência vazia e frustrante, fazendo coisas alienantes que, na realidade, nós, robôs, podemos fazer por eles.
Por isso, nós, os robôs da Renda Básica, pedimos aos responsáveis da política, da economia e da cultura que, com vista ao futuro, analisem e discutam a possibilidade de se introduzir a RENDA BÁSICA INCONDICIONAL.

P.S.- se quiser saber mais sobre a RENDA BÁSICA com vídeo vá a http://rosadosventosan.blogspot.pt/2011/08/renda-basica-de-cidadania.html

-"Cartas Portuguesas" de Sóror Mariana Alcoforado (Quinta Carta)


 QUINTA CARTA
Escrevo-lhe pela última vez e espero fazer-lhe sentir, na diferença de termos e modos desta carta, que finalmente acabou por me convencer de que já me não ama e que devo, portanto, deixar de o amar.
Mandar-lhe-ei, pelo primeiro meio, o que me resta ainda de si. Não receie que lhe volte a escrever, pois nem sequer porei o seu nome na encomenda. De tudo isso encarreguei D. Brites, que eu habituara a confidências bem diferentes. Os seus cuidados não me serão tão suspeitos quanto os meus. Ela tomará as precauções necessárias para que eu fique com a certeza de que recebeu o retrato e as pulseiras que me deu. Quero porém dizer-lhe que me encontro, há já alguns dias, na disposição de me desfazer e queimar essas lembranças do seu amor, que tão preciosas me foram. Mas tanta franqueza lhe tenho mostrado que nunca acreditaria que eu fosse capaz de chegar a tal extremo. Quero sentir até ao fim a pena que tenho em separar-me delas e causar-lhe ao menos algum despeito.
Confesso-lhe, para vergonha minha e sua, que me encontrei mais presa do que quero dizer-lhe a estas futilidades, e senti outra vez necessidade de toda a minha reflexão para me separar de cada uma em particular, e isto quando já me gabava de me ter desprendido de si. Mas, com tantos motivos, consegue-se sempre o que se deseja. Pus tudo nas mãos de D. Brites. Quantas lágrimas me não custou esta resolução! Depois de mil impulsos e mil hesitações, que nem pode imaginar, e de que certamente não lhe darei conta, roguei-lhe para me não voltar a falar nelas, nem mas restituir ainda que lhas pedisse só para as ver uma vez mais e, por fim, remeter-lhas sem me prevenir.
Não conheci o desvario do meu amor senão quando me esforcei de todas as maneiras para me curar dele, e receio que nem ousasse tentá-lo se pudesse prever tanta dificuldade e tanta violência. Creio que me teria sido menos doloroso continuar a amá-lo, apesar da sua ingratidão, do que deixá-lo para sempre. Descobri que lhe queria menos do que à minha paixão, e sofri penosamente em combatê-la, depois que o seu indigno procedimento me tornou odioso todo o seu ser. O orgulho tão próprio das mulheres não me ajudou a tomar qualquer decisão contra si. Ai, suportei o seu desprezo, e teria suportado o ódio e o ciúme que me provocasse a sua inclinação por outra! Ao menos, teria qualquer paixão a combater. Mas a sua indiferença é intolerável. Os impertinentes protestos de amizade e a ridícula correcção da sua última carta provaram-me ter recebido todas as que lhe escrevi e que, apesar de as ter lido, não perturbaram o seu coração. Ingrato! E a minha loucura é tanta ainda, que desespero por já não poder iludir-me com a ideia de não chegarem aí, ou de não lhe terem sido entregues.
Detesto a sua franqueza. Pedi-lhe eu para me dizer pura e simplesmente a verdade? Porque me não deixou com a minha paixão? Bastava não me ter escrito: eu não procurava ser esclarecida. Não me chegava a desgraça de não ter conseguido de si o cuidado de me iludir? Era preciso não lhe poder perdoar? Saiba que acabei por ver quanto é indigno dos meus sentimentos; conheço agora todas as suas detestáveis qualidades. Mas, se tudo quanto fiz por si pode merecer-lhe qualquer pequena atenção para algum favor que lhe peça, suplico-lhe que não me escreva mais e me ajude a esquecê-lo completamente. Se me mostrasse, ao de leve que fosse, ter sentido algum desgosto ao ler esta carta, talvez eu acreditasse; talvez a sua confissão e o seu arrependimento me enchessem de cólera e de despeito; e tudo isso poderia de novo incendiar-me.
Não se meta pois no meu caminho; destruiria, sem dúvida, todos os meus projectos, fosse qual fosse a maneira por que se intrometesse. Não me interessa saber o resultado desta carta; não perturbe o estado para que me estou preparando. Parece-me que pode estar satisfeito com o mal que me causa, qualquer que fosse a sua intenção de me desgraçar. Não me tire desta incerteza; com o tempo espero fazer dela qualquer coisa parecida com a tranquilidade. Prometo-lhe não o ficar a odiar: por de mais desconfio de sentimentos de sentimentos exaltados para me permitir intentá-lo.
Estou convencida de que talvez encontrasse aqui um amante melhor e mais fiel; mas ai!, quem me poderá ter amor? Conseguirá a paixão de outro homem absorver-me? Que poder teve a minha sobre si? Não sei eu por experiência que um coração enternecido nunca mais esquece quem lhe revelou prazeres que não conhecia, e de que era susceptível?, que todos os seus impulsos estão ligados ao ídolo que criou? que os seus primeiros pensamentos e primeiras feridas não podem curar-se nem apagar-se?, que todas as paixões que se oferecem como auxílio, e se esforçam por o encher e apaziguar, lhe prometem em vão um sentimento que não voltará a encontrar? , que todas as distracções que procura, sem nenhuma vontade de as encontrar, apenas servem para o convencer que nada ama tanto como a lembrança do seu sofrimento? Porque me deu a conhecer a imperfeição e o desencanto de uma afeição que não deve durar eternamente, e a amargura que acompanha um amor violento, quando não é correspondido? E por que razão, uma cega inclinação e um cruel destino, persistem quase sempre em prender-nos àqueles que só a outros são sensíveis?
Mesmo que esperasse distrair-me com nova afeição, e deparasse com alguém capaz de lealdade, é tal a pena que sinto por mim que teria muitos escrúpulos em arrastar o último dos homens ao estado a que me reduziu. E embora me não mereça já nenhum respeito, não poderia decidir-me a tão cruel vingança, mesmo se, por uma mudança que não vislumbro, isso viesse a depender de mim.
Procuro neste momento desculpá-lo, e sei bem que uma freira raramente inspira amor; no entanto parece-me que, se a razão fosse usada na escolha, deveriam preferir-se às outras mulheres: nada as impede de pensar constantemente na sua paixão, nem são desviadas por mil coisas com que as outras se distraem e ocupam. Creio que não deve ser muito agradável ver aquelas a quem amamos sempre distraídas com futilidades; e é preciso ter bem pouca delicadeza para suportar, sem desespero, ouvi-las só falar de reuniões, atavios e passeios. Continuamente se está exposto a novos ciúmes, pois elas são obrigadas a certas atenções, certas condescendências, certas conversas. Quem pode garantir que em tais ocasiões se não divirtam, e que suportem os maridos somente com extremo desgosto, e sem qualquer aprovação? Como elas devem desconfiar de um amante que lhes não peça contas rigorosas de tudo isso, que acredite facilmente e sem inquietação no que lhe dizem, e as veja, confiante e tranquilo, sujeitas a todas essas obrigações!
Mas não pretendo provar-lhe com boas razões que me devia amar. Fracos meios seriam estes, e eu outros usei bem melhores sem nenhum resultado. Conheço de sobra o meu destino para tentar mudá-lo. Hei-de ser toda a vida uma desgraçada! Não o era já quando o via todos os dias? Morria de medo que me não fosse fiel; queria vê-lo a cada momento e isso não era possível; inquietava-me com o perigo que corria ao entrar neste convento; não vivia quando estava em campanha; desesperava-me por não ser mais bonita e mais digna de si; lamentava a mediocridade da minha condição; pensava nos prejuízos que lhe podia acarretar a afeição que parecia ter por mim; imaginava que não o amava bastante; receava, por si, a cólera de minha família; enfim, encontrava-me num estado tão lamentável como aquele em que estou agora.
Se me tivesse dado alguma prova de amor, depois de ter saído de Portugal, teria feito todos os esforços para sair daqui; ter-me-ia disfarçado para ir ter consigo. Ai, que teria sido de mim se não se importasse comigo, depois de estar em França? Que horror! Que loucura! Que vergonha tão grande para a minha família, a quem quero tanto, depois que deixei de o amar!
A sangue-frio, como vê, reconheço que podia ainda ser mais digna de piedade do que sou. Ao menos uma vez na vida falo lhe ponderadamente. Quanto lhe agradará a minha moderação, e como ficará satisfeito comigo! Mas não quero sabê-lo! Já lhe pedi, e volto a suplicar-lho para não me escrever mais.
Nunca reflectiu na maneira como me tem tratado? Nunca pensou que me deve mais obrigações do que a qualquer outra pessoa? Amei-o como uma louca, tudo desprezei! O seu procedimento  não é de um homem de bem. É preciso que tivesse por mim uma aversão natural para me não ter amado  apaixonadamente. Deixei-me fascinar por qualidades bem medíocres. Que fez para me agradar? Que sacrifícios fez por mim? Não procurou tantos outros prazeres? Renunciou ao jogo e à caça? Não foi o primeiro a partir para campanha? Não foi o último a regressar? Expôs-se loucamente, apesar de tanto lhe haver pedido que se poupasse por amor de mim. Nunca procurou um meio de se fixar em Portugal, onde era estimado. Uma carta de seu irmão bastou para o fazer abalar, sem a menor hesitação. E não vim eu saber que, durante a viagem, a sua disposição era a melhor do mundo?
Forçoso me é confessar que tenho razões para o odiar mortalmente. Ah, eu própria atraí sobre mim tanta desgraça! Acostumei-o desde início, ingenuamente, a uma grande paixão, e é necessário algum artifício para nos fazermos amar. Devem procurar-se com habilidade os meios de agradar: o amor por si só não suscita amor. Como pretendia que eu o amasse, e como havia formado tal desígnio, não houve nada que não tivesse feito para o atingir; ter-se-ia decidido mesmo a amar-me, se tal fosse preciso. Mas percebeu que o amor não era necessário para o êxito do seu empreendimento, nem dele precisava para nada. Que perfídia! Pensa poder enganar-me impunemente? Se por acaso voltar a este país, declaro-lhe que o entregarei à vingança da minha família.
Muito tempo vivi num abandono e numa idolatria que me horrorizam, e o remorso persegue-me com uma crueldade insuportável. Sinto uma vergonha enorme dos crimes que me levou a cometer; já não tenho pobre de mim!, a paixão que me impedia de conhecer-lhes a monstruosidade. Quando deixará o meu coração de ser dilacerado? Quando é que me livrarei desta cruel perturbação? Apesar de tudo, creio que não lhe desejo nenhum mal, e talvez me não importasse que fosse feliz. Mas como poderá sê-lo, se tiver coração?
Quero escrever-lhe ainda outra carta para lhe mostrar que daqui a algum tempo, talvez já tenha  mais serenidade. Com que satisfação lhe censurarei então o seu injusto procedimento, quando este já não me importunar; lhe farei sentir que o desprezo; que falo da sua traição com a maior indiferença; que esqueci alegrias e penas; e só me lembro de si quando me quero lembrar!
Concordo que tem sobre mim muitas vantagens, e que me inspirou uma paixão que me fez perder a razão; mas não deve envaidecer-se com isso. Eu era nova, ingénua; haviam-me encerrado neste convento desde pequena; não tinha visto senão gente desagradável; nunca ouvira as belas coisas que constantemente me dizia; parecia-me que só a si devia o encanto e a beleza que descobrira em mim, e na qual me fez reparar; só ouvia dizer bem de si; toda a gente me dispunha a seu favor; e ainda fazia tudo para despertar o meu amor… Mas, por fim, livrei-me do encantamento. Grande foi a ajuda que me deu, e de que tinha, confesso, extrema necessidade.

Ao devolver-lhe as suas cartas, guardarei, cuidadosamente, as duas últimas que me escreveu ; hei-de lê-las ainda mais do que li as primeiras, para não voltar a cair nas minhas fraquezas. Ah, quanto me custam e como teria sido feliz se tivesse consentido que o amasse sempre! Reconheço que me preocupo ainda muito com as minhas queixas e a sua infidelidade, mas lembre-se que a mim própria prometi um estado mais tranquilo, que espero atingir, eu então tomarei uma resolução extrema, que virá a conhecer sem grande desgosto. De si nada mais quero. Sou uma doida, passo o tempo a dizer a mesma coisa. É preciso deixá-lo e não pensar mais em si. Creio mesmo que não voltarei a escrever-lhe. Que obrigação tenho eu de lhe dar conta de todos os meus sentimentos?

-"Cartas Portuguesas" de Sóror Mariana Alcoforado ( Quarta Carta)

QUARTA CARTA
O teu tenente acaba de me contar que um temporal te obrigou a arribar ao Reino do Algarve. Receio que tenhas sofrido muito no mar, e este temor de tal modo se apoderou de mim, que nem tenho pensado nas minhas mágoas. Estás convencido que o teu tenente se preocupa mais com o que te acontece do que eu? Porque está então mais bem informado e, enfim, porque não me tens escrito?
Bem desgraçada sou, se depois da tua partida ainda não tiveste ocasião de o fazer; e mais ainda, se a tiveste e não me escreveste. Não sei de maior ingratidão e injustiça; mas ficaria aflitíssima se, por causa disso, te viesse a acontecer qualquer desgraça, pois prefiro não ser vingada a que sejas punido. Resisto a tudo o que parece mostrar-me que já me não amas, e com mais facilidade me entrego cegamente à minha paixão do que às razões que tenho para lamentar o teu abandono.
Quanta inquietação me terias poupado se, quando nos conhecemos, o teu procedimento fosse tão descuidado como o é agora! Mas quem, como eu, se não deixaria enganar por tantos cuidados, e a quem não pareceriam verdadeiros? Que difícil resolvermo-nos a duvidar da lealdade de quem amamos! Sei muito bem que te serves de qualquer desculpa, mas, mesmo sem pensares em dar-ma, o meu amor é tão fiel que só consente em culpar-te para ser maior o prazer em te justificar.
Atormentaste-me com a tua insistência, transtornaste-me com o teu ardor, encantaste-me com a tua delicadeza, confiei nas tuas juras, seduziu-me a minha inclinação violenta, e o que se seguiu a tão agradável e feliz começo não são mais que suspiros, lágrimas e uma tristíssima morte que julgo sem remédio. E certo que tive, ao amar-te, alegrias surpreendentes, mas custam-me agora os maiores tormentos: são extremas todas as emoções que me causas. Se tivesse resistido com afinco ao teu amor, se te houvesse dados motivos de desgosto ou de ciúme para mais te prender, se tivesses notado em mim qualquer intencional reserva, se, enfim, tivesse tentado opor (embora, sem duvida, fossem inúteis tais esforços) a razão à natural inclinação que tenho por ti, e que cedo me fizeste notar, poderias então punir-me severamente e servires-te do teu domínio sobre mim; porém antes de dizeres que me querias já eu te julgava digno de amor, manifestaste-me a tua paixão, fiquei deslumbrada, e abandonei-me a ti perdidamente.
Tu não estavas cego como eu, porque me deixaste então chegar ao estado a que cheguei? Que querias dum desvario que não podia senão importunar-te? Se sabias que não ficavas em Portugal, porque me escolheste a mim para tornares tão desgraçada? Terias, certamente encontrado neste país uma mulher mais bonita com quem tivesses os mesmos prazeres, pois só os de natureza grosseira procuravas; que te amasse fielmente enquanto aqui estivesses; que se resignasse, com o tempo, à tua ausência, e a quem poderias abandonar sem perfídia e crueldade. O teu procedimento é mais de um tirano empenhado em perseguir, que de um amante preocupado apenas em agradar. Ai!, porque tratas tão mal um coração que é teu?
Bem sei que é tão fácil para ti desprenderes-te de mim como para mim o foi prender-me a ti. Eu teria resistido a razões bem mais poderosas do que as que te levaram a partir, sem precisar de invocar o meu amor por ti, nem me passar pela cabeça que fazia fosse o que fosse de extraordinário: todas elas me pareceriam insignificantes e nunca nenhuma poderia arrancar-me de ao pé de ti. Mas tu quiseste aproveitar os pretextos que encontraste para regressar a França. Um navio partia -  porque não o deixaste partir? Tua família havia-te escrito  - não sabias quanto a minha me tem perseguido? Razões de honra levavam-te a abandonar-me - fiz eu algum caso da minha? Tinhas obrigação de servir o teu Rei - mas, se é verdade o que dizem dele, não necessitava dos teus serviços e ter-te-ia dispensado.
Que felicidade a minha, se tivéssemos passado a vida juntos! Mas, se era forçoso que uma cruel ausência nos separasse, creio que devo estar satisfeita por não ter sido infiel, e por nada do mundo quereria ter cometido acção tão indigna. Como pudeste, conhecendo o meu coração e a minha ternura até ao fundo, decidir-te a deixar-me para sempre, e a expor-me ao tormento de que só venhas a lembrar te de mim quando me sacrificas a nova paixão?
Bem sei que te amo perdidamente; no entanto, não lamento a violência dos impulsos do meu coração; habituei-me à sua tirania, e já não poderia viver sem este prazer que vou descobrindo: amar-te entre tanta mágoa. O que me desgosta e atormenta é o ódio e a aversão que ganhei a tudo. A família, os amigos e este convento são-me insuportáveis. Tudo o que seja obrigada a ver, tudo o que inadiavelmente tenha de fazer, me é odioso. Tão ciosa sou da minha paixão que julgo dizerem-te respeito todas as minhas acções e todas as minhas obrigações. Sim, tenho escrúpulo de não serem para ti todos os momentos da minha vida. Ai!, que seria de mim sem tanto ódio e tanto amor a encher-me o coração? Conseguiria eu sobreviver ao que obsessivamente me preocupa para levar uma existência tranquila e sem cuidados? Tal vazio e tal insensibilidade não me convêm.
Toda a gente se apercebeu da completa mudança do meu carácter, dos meus modos, do meu ser. Minha mãe falou-me nisto, primeiro com azedume, depois com certa brandura. Nem sei que lhe respondi; parece-me que lhe confessei tudo. Até as freiras mais austeras têm dó do estado em que me encontro, que lhes merece alguma simpatia, e até cuidado. Todos se comovem com o meu amor, só tu ficas profundamente indiferente, escrevendo-me apenas frias cartas, cheias de repetições, metade do papel em branco, dando grosseiramente a entender que estavas morto por acabá-las.
Dona Brites insistiu, nestes últimos dias, para que saísse do meu quarto; julgando distrair-me, levou-me a passear até ao balcão de onde se avista Mértola. Segui-a, mas fui logo ferida por tão atroz lembrança que passei o resto do dia lavada em lágrimas. Trouxe-me outra vez para o meu quarto, atirei-me para cima da cama, e ali fiquei a reflectir na pouca esperança que tenho de vir um dia a curar me. Tudo o que fazem para me confortar agrava o meu sofrimento, e nos próprios remédios encontro novas razões de aflição. Muitas vezes dali te vi passar com um ar que me deslumbrava; estava naquele balcão no dia fatal em que senti os primeiros sinais da minha desgraçada paixão. Pareceu-me que pretendias agradar-me, embora não me conhecesses; convenci-me de que me havias distinguido entre todas aquelas que estavam comigo; quando paravas imaginava que o fazias intencionalmente para que melhor te visse, e admirasse o garbo e a destreza com que dominavas o cavalo; dava comigo assustada, quando o levavas por sítios perigosos; enfim, interessava-me secretamente por todas as tuas acções, sentia já que não eras de modo nenhum indiferente, e reclamava para mim tudo quanto fazias. Conheces de sobra o que se seguiu a tal começo; e, embora não tenha obrigação de te poupar, não devo falar-te nisso, com receio de te tornar ainda mais culpado, se possível, do que já és, e ter de me acusar por tantos e inúteis esforços que te obrigassem a ser-me fiel. Nunca o serás! Se não conseguir vencer a tua ingratidão à força de amor e renúncia, como haveria de consegui-lo com cartas e queixumes?
Estou mais que convencida do meu infortúnio; a injustiça do teu procedimento não me deixa a menor dúvida, e tudo devo recear, já que me abandonaste.
Serei só eu a sentir o teu encanto? Nenhuns outros olhos darão por ele? Creio que me não seria desagradável se, de algum modo, os sentimentos de outras justificassem os meus, e gostaria que todas as mulheres de França te achassem encantador, mas que nenhuma te amasse e nenhuma te agradasse. Este desejo é inconcebível e ridículo; sei por experiência que és incapaz de fidelidade e não precisas de ajuda para me esqueceres, nem a isso seres levado por nova paixão. Desejaria eu que tivesses um motivo razoável? Seria mais desgraçada, é certo, mas não serias tão culpado.
Vejo que ficarás em França sem grande prazer, e com inteira liberdade. Será a fadiga de tão longa viagem, qualquer pequena conveniência, ou o receio de não corresponderes à minha exaltação que aí te retêm? De mim, nada receies! Bastar-me-ia ver-te de vez em quando e saber apenas que estávamos no mesmo lugar. E talvez me iluda; sei lá se não serás mais sensível à crueldade e à frieza de outra mulher do que foste à minha generosidade. Será possível que gostes de quem te faça mal? Mas antes de te enleares numa grande paixão, reflecte bem no horror do meu sofrimento, na incerteza dos meus planos, na contradição dos meus impulsos, na extravagância das minhas cartas, na minha confiança, e aflição, e desejos, e ciúmes. Ah, serás um desgraçado! Suplico-te que tires ao menos proveito do estado em que me encontro, e que assim o meu sofrimento não seja inútil.
Haverá cinco ou seis meses, fizeste-me uma confidência bem desagradável: confessaste-me, com a maior franqueza, teres amado uma mulher na tua terra; se é ela que te impede de regressar, manda-mo dizer sem rodeios, para que eu deixe de me consumir. Um resto de esperança tem-me ainda de pé, mas, se a não puder sustentar, prefiro perdê-la por completo e perder-me também. Envia-me o retrato dela e alguma das suas cartas e conta-me tudo quanto te diz. Talvez encontre nisso razões para me consolar, ou afligir ainda mais. Neste estado é que não posso permanecer, e qualquer mudança me será favorável. Gostaria também de ter o retrato do teu irmão e da tua cunhada. Tudo o que te diz respeito me enternece, a minha dedicação ao que te pertence é completa; só o que a mim se refere não me preocupa. Às vezes parece-me que até me sujeitaria a servir aquela que amas.  O tormento que me causas e o teu desprezo abalaram-me de tal modo, que nem sequer ouso pensar que pudesse vir a ter ciúmes de ti, com receio de te desagradar; e creio ter feito o pior que podia fazer ao atrever-me a censurar-te. Também estou convencida de que não devia impor-te desvairadamente como faço, por vezes, um sentimento que não aprovas.
Há já muito tempo que um oficial espera esta carta. Tencionava escrevê-la de forma a não te aborrecer, mas é tão incoerente que será melhor acabá-la. Ai, não está em mim poder fazê-lo! Quando te escrevo é como se falasse contigo e estivesses, de algum modo, mais perto de mim. A próxima não será tão longa nem tão importuna; podes abri-la e lê-la, confiado na minha promessa. Na verdade não devo falar-te de uma paixão que te desagrada, e não voltarei a falar nela.
Vai fazer um ano, faltam só alguns dias, que me entreguei inteiramente a ti. A tua paixão parecia-me tão sincera e ardente, que não poderia imaginar sequer que a minha te viesse a aborrecer, a ponto de te obrigar a fazer quinhentas léguas, e a expores-te a naufrágios, para te afastares de mim. Não esperava ser tratada assim por ninguém: devias lembrar-te do meu pudor, da minha confusão, da minha vergonha, mas tu não te lembras de nada que possa levar-te contra vontade a amar-me.
O oficial que há-de levar esta carta previne-me, pela quarta vez, que quer partir. Como ele tem pressa! Abandona, com certeza, alguma desgraçada neste pais. Adeus. Custa-me mais acabar esta carta d que te custou a ti deixa-me, talvez para sempre. Adeus. Não me atrevo sequer a chamar-te meu amor, nem a abandonar-me completamente a tudo o que sinto. Quero-te mil vezes mais que à minha vida e mil vezes mais do que imagino. Ah, corno eu te amo, e como tu és cruel! Nunca me escreves; não consigo) deixar de te dizer ainda isto. Recomeço, e oficial partirá. Se partir, que importa? Escrevo mais para mim do que para ti; não procuro senão alívio. O tamanho desta carta vai assustar-te: não a lerás. Que fiz eu para ser tão desgraçada? Porque envenenaste a minha vida? Porque não nasci noutro país? Adeus. Perdoa-me. Já não ouso pedir-te que me queiras. Vê ao que me reduziu o meu destino. Adeus.


quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

-"Cartas Portuguesas" de Sóror Mariana Alcoforado (Terceira Carta)


 TERCEIRA CARTA

 Que há-de ser de mim? Que queres tu que eu faça? Estou tão longe de tudo quanto imaginei! Esperava que me escrevesses de toda a parte por onde passasses e que as tuas cartas fossem longas; que alimentasses a minha paixão com a esperança de voltar a ver-te; que uma inteira confiança na tua fidelidade me desse algum sossego, e ficasse, apesar de tudo, num estado suportável, sem excessivo sofrimento. Tinha até formado uns vagos projectos de fazer todos os esforços que pudesse para me curar, se tivesse a certeza de me haveres esquecido por completo. A tua ausência, alguns impulsos de devoção, o receio de arruinar inteiramente o que me resta de saúde com tanta vigília e tanta aflição, as poucas possibilidades do teu regresso, a frieza dos teus sentimentos e da tua despedida, a tua partida justificada com falsos pretextos, e tantas outras razões, tão boas como inúteis, prometiam ser-me ajuda suficiente, se viesse a precisar dela. Não sendo, afinal, senão eu própria o meu inimigo, não podia suspeitar de toda a minha fraqueza, nem prever todo o sofrimento de agora.
Ai, como sou digna de piedade por não partilhar contigo as minhas mágoas, e ser só minha a desventura! Esta ideia mata-me, e morro de terror ao) pensar que nunca te houvesses entregado completamente aos nossos prazeres. Sim, reconheço agora a falsidade do teu arrebatamento. Enganaste-me sempre que falaste do encantamento que sentias quando eslavas a sós comigo. Unicamente à minha insistência devo os teus cuidados e a tua ternura. Intentaste desvairar-me a sangue-frio; nunca olhaste a minha paixão senão como um troféu, o teu coração não foi verdadeiramente atingido por ela. Serás tão infeliz, e terás tão pouca delicadeza, que só para isso te servisse o meu ardor? E como é possível que, com tanto amor, não te houvesse feito inteiramente feliz? Tenho pena, por amor de ti apenas, dos infinitos prazeres que perdeste. Será possível que não te tenham interessado? Ah, se os conhecesses, perceberias, sem dúvida, que são mais delicados do que o de me haveres seduzido, e terias compreendido que é bem mais comovente, e bem melhor, amar violentamente que ser amado.
Não sei o que sou, nem o que faço, nem o que quero; estou despedaçada por mil sentimentos contrários. Pode imaginar-se estado mais deplorável? Amo-te de tal maneira que nem ouso sequer desejar que venhas a ser perturbado por igual arrebatamento. Matar-me-ia ou, se o não fizesse, morreria desesperada, se viesse a ter a certeza que nunca mais tinhas descanso, que tudo te era odioso, e a tua vida não era mais que perturbação, desespero e pranto. Se não consigo já suportar o meu próprio mal, como poderia ainda com o teu, a que sou mil vezes mais sensível? Contudo, não me resolvo a desejar que não penses em mim; e confesso ter ciúmes terríveis de tudo o que em França te dá gosto e alegria, e impressiona o teu coração.
Não sei porque te escrevo: terás, quando muito, piedade de mim, e eu não quero a tua piedade. Contra mim própria me indigno, quando penso em tudo o que te sacrifiquei: perdi a reputação, expus-me à cólera de minha família, expus-me à cólera de minha família, a severidade das leis deste país para com as freiras, e à tua ingratidão, que me parece o maior de todos os males. Apesar disso, creio que os meus remorsos não são verdadeiros; do fundo do meu coração queria ter corrido ainda perigos maiores pelo teu amor, e sinto um prazer fatal por ter arriscado a vida e a honra por ti. Não deveria oferecer-te o que tenho de mais precioso? E não devo sentir-me satisfeita por ter feito o que fiz? O que me não satisfaz, pelo menos assim me parece, é o sofrimento e o desvario deste amor, embora não possa, pobre de mim!, iludir-me a ponto  de estar contente contigo. Vivo - que infidelidade! -  e faço tanto por conservar a vida como por perdê-la! Morro de vergonha! Então o meu desespero está só nas minhas cartas? Se te amasse tanto como já mil vezes te disse, não teria morrido há muito tempo? Enganei-te, és tu que deves queixar-te de mim. Ah, porque não te queixas? Vi-te partir, não tenho esperança de te ver regressar e no entanto respiro. Atraiçoei-te; peço-te perdão. Mas não, não me perdoes! Trata—me com dureza. Que a violência dos meus sentimentos te não baste! Sê mais exigente!
Ordena-me que morra de amor por ti! Suplico-te que me ajudes a vencer a fraqueza própria de uma mulher, e que toda a minha indecisão acabe em puro desespero. Um fim trágico obrigar-te-ia, sem dúvida, a pensar mais em mim; talvez fosses sensível a uma morte extraordinária, e a minha memória seria amada. Não é isso preferível ao estado a que me reduziste?
Adeus. Era melhor nunca te ter visto. Ah, sinto até ao fundo a mentira deste pensamento e reconheço, no momento em que escrevo, que prefiro ser desgraçada amando-te do que nunca te haver conhecido. Aceito, assim, sem uma queixa, a minha má fortuna, pois não a quiseste tornar melhor. Adeus: promete-me que terás saudades minhas se vier a morrer de tristeza; e oxalá o desvario desta paixão consiga afastar-te de tudo. Tal consolação me bastará, e se é forçoso abandonar-te para sempre, queria ao menos não te deixar a nenhuma outra. E serias tão cruel que te servisses do meu desespero para te tornares mais sedutor, e te gabares de ter despertado a maior paixão do mundo? Adeus, mais urna vez. Escrevo-te cartas tão longas! Não tenho cuidado contigo! Peço-te que me perdoes, e espero que terás ainda alguma indulgência com uma pobre insensata, que o não era, como sabes, antes de te amar. Adeus; parece-me que te falo de mais do estado insuportável em que me encontro; mas agradeço-te, com toda a minha alma, o desespero que me causas, e odeio a tranquilidade em que vivi antes de te conhecer Adeus. O meu amor aumenta a cada momento. Ah, quanto me fica ainda por dizer..



segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

-"Cartas Portuguesas" de Sóror Mariana Alcoforado (Segunda Carta)

Convento Nossa Senhora da Conceição

SEGUNDA CARTA

Creio que faço ao meu coração a maior das afrontas aos procurar dar-te conta, por escrito, dos meus sentimentos. Seria tão feliz se os pudesse avaliar pela violência dos teus! Mas não posso confiar em ti, nem posso deixar de te dizer, embora sem a força com que o sinto, que não devias maltratar-me assim, com um esquecimento que me desvaira e chega a ser uma vergonha para ti. É justo que suportes, ao menos, as queixas de desgraças que previ ao ver-te decidido a deixar-me. Reconheço que me enganei, ao pensar que procederias com mais lealdade dos que é costume: o excessos do meu amor parece que devia pôr-me acima de quaisquer suspeitas e merecer uma fidelidade que não é vulgar encontrar-se. Mas a tua disposição para me atraiçoar triunfou, afinal, sobre a justiça que devias a tudo quanto fiz por ti. Não deixaria de ser infeliz se soubesse que só ao meu amor ganharas amor, pois tudo quisera dever unicamente à tua inclinação por mim; mas estou tão longe de tal estado que já lá vão seis meses sem receber uma única carta tua. Só à cegueira com que me abandonei a ti posso atribuir tanta desgraça: não tinha obrigação de prever que as minhas alegrias acabariam antes do meu amor? Como poderia esperar que ficasses para sempre em Portugal, renunciasses à tua carreira e ao teu país para não pensares senão em mim? Nenhum alívio há para o meu mal, e se me lembro das minhas alegrias maior é ainda o meu desespero. Terá sido então inútil todo o meu desejo, e não voltarei a ver-te no meu quarto com o
ardor e arrebatamento que me mostravas?
 Ai, que ilusão a minha! Demasiado sei eu que todas as emoções, que em mim se apoderavam da cabeça e do coração, eram em ti despertadas unicamente por certos prazeres e, comos eles, depressa se extinguiam. Precisava, nesses deliciosos instantes, chamar a razão em meu auxílio para moderar o funesto excesso da minha felicidade e me levar a pressentir tudo quanto sofro presentemente. Mas de tal modo me entregava a ti, que era impossível pensar no que pudesse vir envenenar a minha alegria e impedir de me abandonar inteiramente às provas ardentes da tua paixão. Ao teu lado era demasiado feliz para poder imaginar que um dia te encontrarias longe de mim. E, contudo, lembro-me de te haver dito algumas vezes que farias de mim uma desgraçada; mas tais temores depressa se desvaneciam, e com alegria tos sacrificava para me entregar ao encanto, e à falsidade!, dos teus juramentos. Sei bem qual é o remédio para o meu mal, e depressa me livraria dele se deixasse de te amar. Ai, mas que remédio... Não; prefiro sofrer ainda mais do que esquecer-te. E depende isso de mim? Não posso censurar-me ter desejado um só instante deixar de te querer. És tu mais digno de piedade do que eu, pois vale mais sofrer corno sofro do que ter os fáceis prazeres que te hão-de dar em França as tuas amantes. Em nada invejo a tua indiferença: fazes-me pena. Desafio-te a que me esqueças completamente. Orgulho-me de te haver posto em estado de já não teres, sem mim, senão prazeres imperfeitos; e sou mais feliz que tu, porque tenho mais em que me ocupar.


Nomearam-me há pouco tempo porteira deste convento. Todos os que falam comigo crêem que estou doida, não sei que lhes respondo, e é preciso que as freiras sejam tão insensatas como eu para me julgarem capaz seja do que for. Ah, como eu invejo a sorte do Manuel e do Francisco! Porque não estou eu sempre ao pé de ti, como eles? Teria ido contigo e servir-te-ia certamente com mais dedicação.     Nada desejo no mundo senão ver-te. Lembra-te ao menos de mim. Bastar-me-ia que me lembrasses, mas eu nem disso tenho a certeza. Quando te via todos os dias não cingia as minhas esperanças à tua lembrança mas tens-me ensinado a submeter-me a tudo quanto te apetece.

 Apesar disso, não estou arrependida de te haver adorado. Ainda bem que me seduziste. A crueldade da tua ausência, talvez eterna, em nada diminuiu a exaltação do meu amor Quero que toda a gente o saiba, não faço disso nenhum segredo; estou encantada por ter feito tudo quanto fiz por ti, contra toda a espécie de conveniências. E já que comecei, a minha honra e a minha religião hão-de consistir só em amar-te perdidamente toda a vida.
Não te digo estas coisas para te obrigar a escrever-me. Ah, nada faças contrafeito! De ti só quero o que te vier do coração, e recuso todas as provas de amor que tu próprio te possas dispensar. Com prazer te desculparei, se te for agradável não te dares ao trabalho de me escrever; sinto uma profunda disposição para te perdoar seja o que for      Um oficial francês, caridosamente, falou-me de ti esta manhã durante mais de três horas. Disse-me que em França fora feita a paz. Se assim é, não poderias vir ver-me e levar-me para França contigo? Mas não o mereço. Faz o que quiseres: o meu amor já não depende da maneira como tu me tratares.      Desde que partiste nunca mais tive saúde, e todo o meu prazer consiste em repetir o teu nome mil vezes ao dia. Algumas freiras, que conhecem o estado deplorável a que me reduziste, falam-me de ti com frequência. Saio o menos possível deste quarto onde vieste tanta vez, e passo o tempo a olhar o teu retrato, que amo mil vezes mais que à minha vida. Sinto prazer em olhá-lo, mas também me faz sofrer, sobretudo quando penso que talvez nunca mais te veja. Por que fatalidade não hei-de voltar a ver-te?    
      Ter-me-ás deixado para sempre? Estou desesperada, a tua pobre Mariana já não pode mais: desfalece
ao terminar esta carta. Adeus, adeus, tem pena de mim!


sábado, 16 de janeiro de 2016

-"Cartas Portuguesas", de Sóror Mariana Alcoforado

Em 1669, foram publicadas em Paris, com o título Lettres Portugaises cinco cartas escritas por uma freira portuguesa a um oficial francês. O seu teor apaixonado, direto e sensual  fizeram delas um enorme sucesso, embora a maioria dos leitores duvidasse que tivessem sido escritas por uma mulher por acharem que só um homem poderia sentir daquela maneira.
Hoje persistem poucas dúvidas.
A escritora portuguesa Helena Vasconcelos, no seu livro Humilhação e Glória, afirma que Sóror Mariana Alcoforado “ensinou a amar uma vastíssima descendência de mulheres e de (alguns) homens”. “Estou certa que aquelas cartas foram escritas por uma mulher, Mariana ou qualquer outra", porque - e esta é a minha parte favorita do livro - "só as mulheres sabem contar sobre o tremor do corpo".Igualmente, a escritora canadiana Miriam Cyr, no seu livro Letters of a Portuguese Nun, afirma não ter dúvidas de que as cartas foram escritas por Soror Mariana e que ao serem publicadas passaram a ser um dos primeiros românticos “bestsellers” mundiais.


Mariana Vaz Alcoforado (Beja 1640-1723) foi destinada, por testamento de sua mãe, a ser monja no Convento da Conceição. Aos 27 anos apaixonou-se por um oficial francês, o Marquês da Chamilli, que lutava nas fileiras portuguesas durante a Guerra da Independência e cedo a sua cela passou a ser ninho de amor. O escândalo que isso originou fez com que o oficial francês, temendo pela sua vida, fugisse para França com a promessa de que a mandaria buscar. A falta de cumprimento da promessa deu origem às famosas cartas.
Devido à sua extensão iremos publicando as cartas invidualmente e recorremos à excelente tradução de Eugénio de Andrade.

             
Primeira carta
Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência. Desgraçado!, foste enganado e enganaste-me com falsas esperanças. Uma paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal, só comparável à crueldade da ausência que o causa. Há-de então este afastamento, para o qual a minha dor, por mais subtil que seja, não encontrou nome bastante lamentável, privar-me para sempre de me debruçar nuns olhos onde já vi tanto amor, que despertavam em mim emoções que me enchiam de alegria, que bastavam para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto há? Ai!, os meus estão privados da única luz que os alumiava, só lágrimas lhes restam, e chorar é o único uso que faço deles, desde que soube que te havias decidido a um afastamento tão insuportável que me matará em pouco tempo.
Parece-me, no entanto, que até ao sofrimento, de que és a única causa, já vou tendo afeição. Mal te vi a minha vida foi tua, e chego a ter prazer em sacrificar-ta. Mil vezes ao dia os meus suspiros vão ao teu encontro, procuram-te por toda a parte e, em troca de tanto desassossego, só me trazem sinais da minha má fortuna, que cruelmente não me consente qualquer engano e me diz a todo o momento: Cessa, pobre Mariana, cessa de te mortificar em vão, e de procurar um amante que não voltarás a ver, que atravessou mares para te fugir, que está em França rodeado de prazeres, que não pensa um só instante nas tuas mágoas, que dispensa todo este arrebatamento e nem sequer sabe agradecer-to. Mas não, não me resolvo, a pensar tão mal de ti e estou por demais empenhada em te justificar. Nem quero imaginar que me esqueceste. Não sou já bem desgraçada sem o tormento de falsas suspeitas? E porque hei-de eu procurar esquecer todo o desvelo com que me manifestavas o teu amor? Tão deslumbrada fiquei com os teus cuidados, que bem ingrata seria se não te quisesse com desvario igual ao que me levava a minha paixão, quando me davas provas da tua.
Como é possível que a lembrança de momentos tão belos se tenha tornado tão cruel? E que, contra a sua natureza, sirva agora só para me torturar o coração? Ai!, a tua última carta reduziu-o a um estado bem singular: bateu de tal forma que parecia querer fugir-me para te ir procurar. Fiquei tão prostrada de comoção que durante mais de três horas todos os meus sentidos me abandonaram: recusava uma vida que tenho de perder por ti, já que para ti a não posso guardar. Enfim, voltei, contra vontade, a ver a luz: agradava-me sentir que morria de amor, e, além do mais, era um alívio não voltar a ser posta em frente do meu coração despedaçado pela dor da tua ausência.
Depois deste acidente tenho padecido muito, mas como poderei deixar de sofrer enquanto não te vir? Suporto contudo o meu mal sem me queixar, porque me vem de ti. É então isto que me dás em troca de tanto amor? Mas não importa, estou resolvida a adorar-te toda a vida e a não ver seja quem for, e asseguro-te que seria melhor para ti não amares mais ninguém. Poderias contentar te com uma paixão menos ardente que a minha? Talvez encontrasses mais beleza (houve um tempo, no entanto, em que me dizias que eu era muito bonita), mas não encontrarias nunca tanto amor, e tudo o mais não é nada.
Não enchas as tuas cartas de coisas inúteis, nem me voltes a pedir que me lembre de ti. Eu não te posso esquecer, e não esqueço também a esperança que me deste de vires passar algum tempo comigo. Ai!, porque não queres passar a vida inteira ao pé de mim? Se me fosse possível sair deste malfadado convento, não esperaria em Portugal pelo cumprimento da tua promessa: iria eu, sem guardar nenhuma conveniência, procurar-te, e seguir te, e amar-te em toda a parte. Não me atrevo a acreditar que isso possa acontecer; tal esperança por certo me daria algum consolo, mas não quero alimentá-la, pois só à minha dor me devo entregar. Porém, quando meu irmão me permitiu que te escrevesse, confesso que surpreendi em mim um alvoroço de alegria, que suspendeu por momentos o desespero em que vivo. Suplico-te que me digas porque teimaste em me desvairar assim, sabendo, como sabias, que terminavas por me abandonar? Porque te empenhaste tanto em me desgraçar? Porque não me deixaste em sossego no meu convento? Em que é que te ofendi? Mas perdoa-me; não te culpo de nada. Não me encontro em estado de pensar em vingança, e acuso somente o rigor do meu destino. Ao separar-nos, julgo que nos fez o mais temível dos males, embora não possa afastar o meu coração do teu; o amor, bem mais forte, uniu-os para toda a vida. E tu, se tens algum interesse por mim, escreve-me amiúde. Bem mereço o cuidado de me falares do teu coração e da tua vida; e sobretudo vem ver-me.
Adeus. Não posso separar-me deste papel que irá ter às tuas mãos. Quem me dera a mesma sorte! Ai, que loucura a minha! Sei bem que isso não é possível! Adeus; não posso mais. Adeus. Ama-me sempre, e faz-me sofrer mais ainda.


sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

- "Pois bem !", de Afonso lopes Vieira



Por Afonso Lopes Vieira

 (Leiria 1878 - Lisboa 1946)


Pois bem! 


Se um inglês ao passar me olhar com desdém,
num sorriso de dó eu pensarei: — Pois bem!
se tens agora o mar e a tua esquadra ingente,
fui eu que te ensinei a nadar, simplesmente.
Se nas Índias flutua essa bandeira inglesa,
fui eu que t'as cedi num dote de princesa.
e para te ensinar a ser correcto já,
coloquei-te na mão a xícara de chá...

E se for um francês que me olhar com desdém,
num sorriso de dó eu pensarei: — Pois bem!
Recorda-te que eu tenho esta vaidade imensa
de ter sido cigarra antes da Provença.
Rabelais, o teu génio, aluno eu o ensinei
Antes de Montgolfier, um século! Voei
E do teu Imperador as águias vitoriosas
fui eu que as depenei primeiro, e
 às gloriosas
o Encoberto as levou, enxotando-as no ar,
por essa Espanha acima, até casa a coxear.

E se um Yankee for que me olhar com desdém,
Num sorriso de dó eu pensarei: — Pois bem!
Quando um dia arribei à orla da floresta,
Wilson estava nu e de penas na testa.
Olhava para mim o vermelho doutor,
— eu era então o João Fernandes Labrador...
E o rumo que seguiste a caminho da guerra
Fui eu que to marquei, descobrindo a tua terra.

Se for um Alemão que me olhar com desdém,
num sorriso de dó eu pensarei: — Pois bem!
Eras ainda a horda e eu orgulho divino,
Tinha em veias azuis gentil sangue latino.
Siguefredo esse herói, afinal é um tenor...
Siguefredos hei mil, mas de real valor.
Os meus deuses do mar, que Valhala de Glória!
Os Nibelungos meus estão vivos na História.

Se for um Japonês que me olhar com desdém,
num sorriso de dó eu pensarei: — Pois bem!
Vê no museu Guimet um painel que lá brilha!
Sou eu que num baixel levo a Europa á tua ilha!
Fui eu que te ensinei a dar tiros, ó raça
belicosa do mundo e do futuro ameaça.
Fernão Mendes Zeimoto e outros da minha guarda
foram-te pôr ao ombro a primeira espingarda.

Enfim, sob o desdém dos olhares, olho os céus;
Vejo no firmamento as estrelas de Deus,
e penso que não são oceanos, continentes,
as pérolas em monte e os diamantes ardentes,
que em meu orgulho calmo e enorme estão fulgindo:
— São estrelas no céu que o meu olhar, subindo,
extasiado fixou pela primeira vez...
Estrelas coroai meu sonho Português!

P.S.
A um Espanhol, claro está, nunca direi: — Pois bem!
Não concebo sequer que me olhe com desdém.


sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

- 500º aniversário da morte de Afonso de Albuquerque

A PROPÓSITO DO 500º ANIVERSÁRIO DA MORTE DE AFONSO DE ALBUQUERQUE EM 16 DE DEZEMBRO DE 1515, O JORNAL "MUNDO PORTUGUÊS"PUBLICOU O EXCELENTE ARTIGO QUE, PERCIALMENTE SE TRANSCREVE.

O MUSEU DA HERANÇA DO POVOADO PORTUGUÊS DE MALACA

"A três quilómetros do centro de Malaca, capital do estado com o mesmo nome, na Malásia, há um museu que preserva a memória da presença portuguesa no país, e que se sentiu mais fortemente naquela cidade. O Portuguese Settlement Heritage Museum (Museu da Herança do Povoado Português) abriu portas há três anos, pelas mãos de dois luso-descendentes, Christopher De Mello e Jerry Alcântara.




A cidade que Afonso de Albuquerque conquistou em 1511, para ser uma base estratégica para a expansão portuguesa nas índias Orientais, e que durante 130 anos (1511-1641) foi uma colónia portuguesa, tem desde há três anos um espaço que preserva a memória portuguesa. 
E tudo graças à comunidade de descendência portuguesa (iniciada após a tomada de Malaca por Afonso de Albuquerque em 1511) que está a divulgar as memórias da sua ligação a Portugal num museu que sobrevive do voluntariado.
O Portuguese Settlement Heritage Museum (Museu da Herança do Povoado Português), como é conhecido localmente, fica precisamente no centro do Portuguese Settlement, um bairro a cerca de três quilómetros de centro de Malaca que foi criado na década de 1930 para os descendentes de portugueses espalhados pela região. 

Malaca, que em 2008 foi declarada Património Mundial pela UNESCO, é hoje uma cidade fortemente turística, retratando a história dos vários povos que por aqui passaram. Entre as grandes atrações figuram o Museu Marítimo, que consiste numa réplica da nau Flor de la Mar, a Igreja de São Paulo e a Porta de Santiago, o que resta da fortaleza mandada construir por Afonso de Albuquerque."