Do Coliseu ao Cairo
por MARIA DE LURDES VALE in "DN Opinião" de30 Janeiro 2011
Na sexta-feira à noite, os Deolinda tocaram no Coliseu de Lisboa. No final, no último encore, sentiu-se um arrepio na sala. Foi comum. Sentiu-se que foi comum. E de tal forma assim foi que todos os que ali estávamos começamos a levantar-nos aos poucos e a aplaudir, sem parar, o que nos transmitia a voz - que grande voz! - de Ana Bacalhau, vocalista deste grupo que tão bem canta a vida portuguesa. Alguns de nós sabíamos que, lá fora, neste mundo a que todos pertencemos, havia quem, da Tunísia ao Egipto, estivesse, nas ruas, a lutar pela liberdade com o fim de alcançar uma vida mais digna. Outros saberiam mais. Que esse grito de revolta, que está a fazer história em frente aos nossos olhos, foi primeiro ensaiado através das redes sociais, da Internet, e do espaço virtual que todos partilhamos. Que, no mês de Dezembro, em Sidi Bouzid, 260 quilómetros a Sul de Tunes, Mohamed Bouazizi, um jovem licenciado de 26 anos, imolou-se pelo fogo para protestar contra um velho regime de cleptocratas que não lhe deixou outra alternativa que o seu próprio sacrifício. E que esse sacrifício não foi em vão. O regime caiu.
Naquela sala do Coliseu de Lisboa, muitos mais saberiam muito mais coisas. Que o que se passa nalguns países do Magrebe está a ter um efeito-dominó e a contagiar o resto do mundo árabe. Que são os milhares de jovens universitários, a quem nada mais resta nos países onde nasceram que fugir em busca de um qualquer trabalho clandestino na Europa ou nos EUA, onde é difícil entrar, que lideram esta revolta. Que na capital do Egipto há confrontos, mortos e feridos, tanques, jactos de água, mas que nem por isso a rua deixa de ser o palco dos protestos. Que a chama foi acesa por um discurso histórico de Obama, em Junho de 2009, quando disse no Cairo que "todos nós partilhamos este mundo por apenas um breve momento no tempo" e que "a questão é saber se queremos passar esse tempo concentrando-nos naquilo que nos diferencia, ou se estamos dispostos a um esforço, contínuo, para encontrar um terreno comum e concentrar-nos no futuro que queremos para os nossos filhos, e respeitar a dignidade de todos os seres humanos".
Naquela sala do Coliseu de Lisboa, a vocalista dos Deolinda, do alto dos seus 33 anos, anunciou que a última canção era nova e que era "dura" de ouvir. Chama-se "Que parva que eu sou" e diz assim: "Sou da geração sem remuneração e não me incomoda esta condição. Que parva que eu sou! Porque isto está mal e vai continuar, já é uma sorte eu poder estagiar. Que parva que eu sou! E fico a pensar, que mundo tão parvo onde para ser escravo é preciso estudar..."
Que parvos que somos
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Nota: não fazendo parte do artigo transcrito, segue-se a letra da canção e um vídeo que dá conta da reação do público no Coliseu do Porto.
Sou da geração sem remuneraçãoE não me incomoda esta condição
Que parva que eu sou
Porque isto está mal e vai continuar
Já é uma sorte eu poder estagiar
Que parva que eu sou
E fico a pensar
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar
Sou da geração "casinha dos pais"
Se já tenho tudo, pra quê querer mais?
Que parva que eu sou
Filhos, maridos, estou sempre a adiar
E ainda me falta o carro pagar
Que parva que eu sou
E fico a pensar
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar
Sou da geração "vou queixar-me pra quê?"
Há alguém bem pior do que eu na TV
Que parva que eu sou
Sou da geração "eu já não posso mais!"
Que esta situação dura há tempo demais
E parva não sou
E fico a pensar,
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar
A canção diz tudo,é a triste realidade do mundo,e deste pais!
ResponderEliminarO grito de revolta no mundo árabe já tardava,sem dúvida que a internet é um veículo muito importante na actualidade,só é pena que em simultâneo por ela navegue tanto lixo inútil á humanidade!
É triste,ver um povo tão estupido como o nosso(não generalizando)fico deveras triste quando oiço colegas dizer que a crise não existe,ou que a crise sempre existiu,ou que nos tempos dos nossos pais tinha-se muito menos do que temos hoje e vivia-se,como se fosse normal voltar a viver como no passado e mais grave ainda,uma jovem colega dizer que não acredita na crise,que a crise são as pessoas que a inventam,eu ripostei e pergunta-me com o ar mais estupido que eu já vi até esta idade:em que é que a crise a afecta?a primeira reacção foi dar-lhe um par de estalos,mas pensei que era tempo perdido,virei costas, e assim vai Portugal!
Penso que a causa não radica no Governo, qualquer que ele seja, pois os governantes limitam-se a gerir a crise. Ela, a CRISE, é que é resultante duma Sociedade cujo paradigma já demonstrou à exaustão que está podre e ultrapassada. Há que mudar, portanto, para um paradigma que se consubstancie no conceito de que a Economia só existe para servir o Homem e não este para servir aquela. Onde o Capital Financeiro corresponda unicamente ao Capital Económico. Onde a ética prevaleça sobre a exploração. Onde o Ter se sobreponha ao Ser. Doutra forma, os ganhos da evolução tecnológica permanente continuarão a reverter cada vez mais em favor de cada vez menos e, decorrente disso, o problema do desemprego será insolúvel e os seus números serão assustadoramente galopantes num horizonte muito próximo, até ao colapso total, que, muito provavelmente, deixará um rasto devastador. Estou descrente sobre um futuro airoso para os meus netos.
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