Os massacres que deram origem à guerra
Faz hoje 50 anos que em Angola se manifestou uma das maiores formas de selvajaria, que rivaliza com os maiores atos de primitivismo da história da humanidade.
Faz hoje 50 anos que em Angola se manifestou uma das maiores formas de selvajaria, que rivaliza com os maiores atos de primitivismo da história da humanidade.
Mais trágica se torna essa manifestação por ter sido encorajada e subsidiada pelas igrejas evangélicas dos EUA, apoiadas pelo seu governo em obediência aos interesses dos capitalistas sem escrúpulos que pretendiam apoderar-se dos recursos de Angola, visando, essencialmente, os diamantes, o petróleo e as pirites.
Quero crer que os mandantes desses atos, com a inocência e ignorância que sempre caraterizou os EUA, tenham ficado surpreendidos e até horrorizados ao verem os atos de selvajaria a que deram origem. Mas, além de não contarem com a selvajaria dos executantes, os estrategas dessas ações cometeram o erro de não considerarem o chamamento do sangue e o forte espírito de justiça que existe em todos os portugueses.
Esses erros, fizeram com que a sublevação, que poderia ter o apoio de muitos portugueses, gerasse um sentimento de indignação que influenciou a forma como a guerra decorreu. Além de que, fez com que muitos se deixassem arrastar para a guerra para defenderem os valores da nossa civilização. Conheci alguns, com cursos superiores, que tinham residência no estrangeiro, que podiam evitar de irem para a guerra mas que acharam ser seu dever impedir o triunfo do primitivismo e da selvajaria.
Curiosamente, muitos consideravam a independência das colónias como algo inevitável, necessário e aconselhável, a que estariam dispostos a dar o seu apoio. Os massacres de 15 de Março alteraram, completamente, a situação.
Recordando esta data trágica, transcrevo os relatos dos acontecimentos feitos por três pessoas que os observaram e que vêm publicados no livro “Angola 61” da autoria de Dalila Cabrita Mateus e de Álvaro Mateus.
“O relato de Franco Nogueira
O relato dos ataques do 15 de Março de 1961 feito pelo embaixador Franco Nogueira é uma boa síntese dos factos. Retirada alguma adjectivação, de modo a manter a necessária objectividade, aqui vai o que escreveu:
«...De 14 para 15 de Março de 1961 [...] são atacadas Sto. Antônio do Zaire, S. Salvador do Congo, Maquela do Zombo, que se podem considerar quase raianas. Mas são igualmente acometidas Ambrizete, Negaje, Mucaba, Sanza-Pombo. Toda a Baixa de Cassange está em alvoroço. E [os atacantes] estão às portas de Carmona» - conta Franco Nogueira. E prossegue:
«Em menos de 48 horas, pelos distritos do Zaire e do Uije é a devastação maldita. Plantações e casas solitárias são saqueadas e incendiadas. Aldeias são arrasadas.
É posto cerco a vilas e pequenas povaçôes, cortando-lhe os abastecimentos.Vias e meios de comunicação ficam destruídos.E a cidade de Carmona apenas consegue resistir graças ao heroismo dos seus habitantes(…).
É posto cerco a vilas e pequenas povaçôes, cortando-lhe os abastecimentos.Vias e meios de comunicação ficam destruídos.E a cidade de Carmona apenas consegue resistir graças ao heroismo dos seus habitantes(…).
Não se faz distinção de etnias, nem de sexo, nem de idades tão-pouco. É terror maciço e cru. Além dos praticados na Baixa de Cassange e contra as vilas fronteiriças, parecem ser particularmente violentos os massacres nas regiões de Nambuan-gongo, Quicabo e Quitexe.
Como nos tempos remotos das grandes barbáries, são assassinados homens, mulheres, velhos e crianças, autoridades administrativas, agentes da ordem, brancos, negros e mestiços. Ou fuzilados, ou queimados dentro das casas e cubatas, ou esquartejados e degolados, ou serrados vivos. [...].
[...] Os que ficam ainda, aquém do terror que alastra, procuram na fuga a salvação. Amontoam-se nos transportes públicos que regurgitam muito para além das lotações e aos milhares tentam dirigir-se para Luanda. [...] E os itinerários não estão protegidos. Há cortes de picadas. Não se sabe que situação existe na próxima localidade. E nas pistas por que tomam ou nas povoações por que passam apenas encontram corpos chacinados. E ruína, mais ruína.
[...] Entretanto, começam a afluir a Luanda os fugitivos: são chusmas em tropel, feridos, esfarrapados, cobertos de pó e terra encarnada, mutilados à beira da morte por míngua de cuidados [...].
São divulgados os cálculos provisórios das autoridades: devem ter sido assassinados, entre os elementos da população, cinco ou seis mil pessoas; e abatidos dois a três mil [atacantes].
[...] De repente está criado um clima de suspeita, de ódio entre raças: os brancos vêem em cada negro um possível terrorista; os negros vêem em cada branco um homem que se quer vingar e que agora mata sem hesitar. Deste modo, e além das atrocidades dos assaltantes, assumem gravidade o ataque preventivo e a retaliação indiscriminada de brancos sobre negros e destes sobre aqueles.»26
O relato da angolana Ana Inglês.
Ao longo do caminho vimos enorme morticínio de pessoas brancas e pretas, sem braços, sem pernas, sem olhos. E acrescenta
«Cheguei ao Pire com o meu pai e encontrámos aquilo num enorme rebuliço, porque os que estavam nas matas tinham atacado Quitexe, Balongongo e Aldeia Viçosa. Já havia pretos e brancos mortos, morticínios terríveis.»28
Nos arquivos de Salazar encontra-se um documento, simultaneamente terrífico e comovente. A carta de uma menina, que relata a forma como seus pais foram mortos em Quitexe e como tomou conhecimento do facto. Ali se escreve:
O dia 16 de Março de 1961 calhou nas férias da Páscoa. Tínhamos acordado há pouco tempo. Eu e a minha prima íamos começar a arrumar a casa, trabalho que fazíamos sempre que havia tempo. O meu primo foi à janela e viu um táxi, onde lhe pareceu ver a tia. A irmã da minha mãe saiu do carro a chorar. Ficámos todos aflitos e levámo-la para dentro. Só conseguiu dizer: - Mataram os pais dela. Desatei a chorar.
Levei tempo, talvez meses, a convencer-me da verdade.
O ataque a Quitexe realizou-se no dia 15 de Março, pela manhã. O meu pai era um homem bastante alto e forte. Pouca gente se atreveria a lutar com ele. Prepararam-lhe uma emboscada, ao pé de uma porta. Quando ia atravessá-la, deram-lhe uma catanada no nariz. Amparou a parte magoada, mas ao atravessar outra porta, segunda catanada no pescoço, que o matou.
A mãe morreu à porta de casa. Creio que ouviu barulho e que veio ver o que era. O meu irmão não sei, creio que morreu abraçado à mãe e que foram assim enterrados. Que mal podia fazer uma criança só com 6 anos ?”Segue-se um vídeo com cenas dos massacres.
Sem comentários:
Enviar um comentário