Uma perspectiva inteligente da actuação portuguesa no Brasil, em tempos de “Copa”. Vale a pena ler.
Por Norma Couri em 24/06/2014
Carlos Drummond já dizia que não existe consolo na perda, o importante é ganhar. E o empate com os Estados Unidos no último minuto do jogo de domingo (22/6) não animou Portugal, que precisa vencer Gana na quinta-feira (26), e torcer para os Estados Unidos não empatar com a Alemanha – algoz dos portugueses com placar de 4×0. semana passada. Mas como tudo depende do ponto de vista, Portugal deve exultar pelas conquistas desta Copa no Brasil. Onde mesmo? Nos palcos, nas telas, nos livros, na arte e na imprensa que nunca antes na história deste país abriu tanto espaço e prestígio para a antiga Corte com quem travamos há cinco séculos uma relação de amor e… não ódio, gozação. Sem estreitar o oceano que nos separa.
Pelo menos sem deixar Portugal se tornar um imenso Brasil aqui dentro, como Chico Buarque pretendia ao cantar “Fado Tropical”. Ou como José Saramago torcia para que Portugal se deslocasse do mapa europeu e se unisse, num continente único, ao Brasil e à África (Jangada de Pedra,Companhia das Letras).
O que se ouviu na homenagem ao Dia de Portugal (10 de junho, comemorado dia 13) na sala de concertos mais luxuosa da América Latina, a Sala São Paulo, foi um Antonio Zambujo ecoar com acústica que atravessa séculos “ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal/ ainda vai tornar-se um imenso Portugal”. Eram 1.500 pessoas, 100 ficaram na porta, a maioria brasileira, cantando junto com a última descoberta musical do país, Antonio Zambujo, o preferido de Caetano Veloso. Com quatro CDs no Brasil – “Outro Sentido”, “Guia”, “Quinto”, “O Mesmo Fado” –, desde Amália Rodrigues um músico português não fazia tanto sucesso como este alentejano de 38 anos que faz reviravoltas rítmicas até em Lupicínio Rodrigues e virou xodó nas nossas praias. A plateia delirou. “Foi fantástico, não quero mais ir embora, quero morar aqui, neste lugar, nesta casa”, respondeu o músico que, quando menino em Beja, costumava tocar com talheres de madeira na falta de instrumentos próprios, não podia viver sem música.
Outros fantásticos cantores, compositores, instrumentistas passaram e passam por aqui: Sergio Godinho, Vitorino, o conjunto à capela Tetvocal, Eugenia Mello e Castro. Mas só nesta Copa do Mundo as fronteiras culturais ficaram escancaradas mesmo quando, três dias depois do show de Zambujo, o Brasil amargou a apatia dos portugueses na partida contra os alemães que há muito “jantam” a Europa no tabuleiro econômico.
Gol de placa
Portugal entrou para valer. Saramago ainda não conseguiu modificar o mapa do mundo, mas seu romance O HomemDuplicado está nos cinemas numa adaptação do canadense Denis Villeneuve e figura entre os melhores em cartaz, disputando plateia com o campeonato mundial. Manoel de Oliveira sempre foi cultuado, mas em círculos cinéfilos. José Fonseca e Costa já nos brindou com excelentes filmes como A Mulher do Próximo, com Fernanda Torres. Miguel Gomes começou a brilhar há dois anos no Brasil com Tabu, homenagem à obra de Murnau (1931). E Maria de Medeiros só agora emplaca na ex-colônia como atriz e diretora em filmes e peças, inclusive apresentando o show de Zambujo.
No sábado (21/6), um dia antes da partida contra os Estados Unidos, a imprensa brasileira abriu espaço para o livro Jogada Ilegal (Gryphus), do jornalista português Luis Aguilar, expondo os escândalos que cercam a cúpula do futebol (“Prosa e Verso”, O Globo, 21/6/2014, ver aqui). O mesmo jornal apresentou o perfil saboroso da poeta portuguesa nômade, Matilde Campilho, autora de Jóquei, que conquistou fãs como Chacal (“Matilde é um caso único de taquigrafia poética”). E no mesmo dia o Estado de S.Paulo reservou página inteira para a obra do escritor convidado para a FLIP, Almeida Faria. A Paixão (Cosac Naify) narra a agonia do regime de Salazar que dirigiu o destino de Portugal por mais de 40 anos.
Os azulejos da artista Manuela Pimentel, redesenhados sobre camadas de grafite, vão ser expostos no Rio de Janeiro em sua coleção “Murmúrios de Muros”, agora no Instituto Portoghese di Sant’Antonio em Roma – é o que nos informa O Globo em página colorida. Está em exposição no consulado português de São Paulo a obra de 60 anos do artista luso-brasileiro Fernando Lemos, “Desenho, Só Desenho – a Sós”. Isso para citar alguns.
Foi a surpresa da Copa, depois de ver nos alemães a alegria e os passos de “Lepo Lepo” que esperávamos dos portugueses, o que mereceu dos cariocas a piada “os brutos também amam”. Mas se houve decepção com o jogador mais rico do mundo, Cristiano Ronaldo – fortuna avaliada em R$ 450 milhões, salário anual líquido de R$ 51,7 milhões no Real Madri –, Portugal, o país, conquistou aqui a estrela da sorte.
Como lembrou Roberto Pompeu na última página da edição corrente de Veja, no artigo “Imagina na Copa”, duas Copas atrás Portugal tinha um jogador que se chamava Luis Boa Morte, e estava longe de inspirar bom agouro. Agora, do goleiro Rui Patrício ao meio campo João Moutinho, os nomes lusitanos nos conduzem aos romances portugueses do século 19. Um deles, Fábio Coentrão – sugere Pompeu – até podia ser um cunhado do padre Amaro.
Isso, sim, é uma vitória nunca alcançada, apesar de todos os esforços econômicos e políticos ao longo dos séculos. Não é que o golaço foi acontecer nesta Copa, pela lateral, sem bater na trave, distante das arenas e quando ninguém esperava?
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Norma Couri é jornalista