QUARTA CARTA
O teu tenente acaba de me contar que um temporal te
obrigou a arribar ao Reino do Algarve. Receio que tenhas sofrido muito no mar,
e este temor de tal modo se apoderou de mim, que nem tenho pensado nas minhas
mágoas. Estás convencido que o teu tenente se preocupa mais com o que te
acontece do que eu? Porque está então mais bem informado e, enfim, porque não
me tens escrito?
Bem desgraçada sou, se depois da tua partida ainda não
tiveste ocasião de o fazer; e mais ainda, se a tiveste e não me escreveste. Não
sei de maior ingratidão e injustiça; mas ficaria aflitíssima se, por causa
disso, te viesse a acontecer qualquer desgraça, pois prefiro não ser vingada a
que sejas punido. Resisto a tudo o que parece mostrar-me que já me não amas, e
com mais facilidade me entrego cegamente à minha paixão do que às razões que
tenho para lamentar o teu abandono.
Quanta inquietação me terias poupado se, quando nos
conhecemos, o teu procedimento fosse tão descuidado como o é agora! Mas quem,
como eu, se não deixaria enganar por tantos cuidados, e a quem não pareceriam
verdadeiros? Que difícil resolvermo-nos a duvidar da lealdade de quem amamos!
Sei muito bem que te serves de qualquer desculpa, mas, mesmo sem pensares em
dar-ma, o meu amor é tão fiel que só consente em culpar-te para ser maior o
prazer em te justificar.
Atormentaste-me com a tua insistência,
transtornaste-me com o teu ardor, encantaste-me com a tua delicadeza, confiei
nas tuas juras, seduziu-me a minha inclinação violenta, e o que se seguiu a tão
agradável e feliz começo não são mais que suspiros, lágrimas e uma tristíssima
morte que julgo sem remédio. E certo que tive, ao amar-te, alegrias
surpreendentes, mas custam-me agora os maiores tormentos: são extremas todas as
emoções que me causas. Se tivesse resistido com afinco ao teu amor, se te
houvesse dados motivos de desgosto ou de ciúme para mais te prender, se
tivesses notado em mim qualquer intencional reserva, se, enfim, tivesse
tentado opor (embora, sem duvida, fossem inúteis tais esforços) a razão à
natural inclinação que tenho por ti, e que cedo me fizeste notar, poderias
então punir-me severamente e servires-te do teu domínio sobre mim; porém antes
de dizeres que me querias já eu te julgava digno de amor, manifestaste-me a tua
paixão, fiquei deslumbrada, e abandonei-me a ti perdidamente.
Tu não estavas cego como eu, porque me deixaste então
chegar ao estado a que cheguei? Que querias dum desvario que não podia senão
importunar-te? Se sabias que não ficavas em Portugal, porque me escolheste a
mim para tornares tão desgraçada? Terias, certamente encontrado neste país uma
mulher mais bonita com quem tivesses os mesmos prazeres, pois só os de natureza
grosseira procuravas; que te amasse fielmente enquanto aqui estivesses; que se
resignasse, com o tempo, à tua ausência, e a quem poderias abandonar sem
perfídia e crueldade. O teu procedimento é mais de um tirano empenhado em
perseguir, que de um amante preocupado apenas em agradar. Ai!, porque tratas
tão mal um coração que é teu?
Bem sei que é tão fácil para ti desprenderes-te de mim
como para mim o foi prender-me a ti. Eu teria resistido a razões bem mais
poderosas do que as que te levaram a partir, sem precisar de invocar o meu amor
por ti, nem me passar pela cabeça que fazia fosse o que fosse de extraordinário:
todas elas me pareceriam insignificantes e nunca nenhuma poderia arrancar-me de
ao pé de ti. Mas tu quiseste aproveitar os pretextos que encontraste para
regressar a França. Um navio partia - porque não o deixaste partir? Tua
família havia-te escrito - não sabias quanto a minha me tem perseguido?
Razões de honra levavam-te a abandonar-me - fiz eu algum caso da minha? Tinhas
obrigação de servir o teu Rei - mas, se é verdade o que dizem dele, não
necessitava dos teus serviços e ter-te-ia dispensado.
Que felicidade a minha, se tivéssemos passado a vida
juntos! Mas, se era forçoso que uma cruel ausência nos separasse, creio que
devo estar satisfeita por não ter sido infiel, e por nada do mundo quereria ter
cometido acção tão indigna. Como pudeste, conhecendo o meu coração e a minha
ternura até ao fundo, decidir-te a deixar-me para sempre, e a expor-me ao
tormento de que só venhas a lembrar te de mim quando me sacrificas a nova
paixão?
Bem sei que te amo perdidamente; no entanto, não
lamento a violência dos impulsos do meu coração; habituei-me à sua tirania, e
já não poderia viver sem este prazer que vou descobrindo: amar-te entre tanta
mágoa. O que me desgosta e atormenta é o ódio e a aversão que ganhei a tudo. A
família, os amigos e este convento são-me insuportáveis. Tudo o que seja
obrigada a ver, tudo o que inadiavelmente tenha de fazer, me é odioso. Tão
ciosa sou da minha paixão que julgo dizerem-te respeito todas as minhas acções
e todas as minhas obrigações. Sim, tenho escrúpulo de não serem para ti todos
os momentos da minha vida. Ai!, que seria de mim sem tanto ódio e tanto amor a
encher-me o coração? Conseguiria eu sobreviver ao que obsessivamente me
preocupa para levar uma existência tranquila e sem cuidados? Tal vazio e tal
insensibilidade não me convêm.
Toda a gente se apercebeu da completa mudança do meu
carácter, dos meus modos, do meu ser. Minha mãe falou-me nisto, primeiro com
azedume, depois com certa brandura. Nem sei que lhe respondi; parece-me que lhe
confessei tudo. Até as freiras mais austeras têm dó do estado em que me
encontro, que lhes merece alguma simpatia, e até cuidado. Todos se comovem com
o meu amor, só tu ficas profundamente indiferente, escrevendo-me apenas frias
cartas, cheias de repetições, metade do papel em branco, dando grosseiramente a
entender que estavas morto por acabá-las.
Dona Brites insistiu, nestes últimos dias, para que
saísse do meu quarto; julgando distrair-me, levou-me a passear até ao balcão de
onde se avista Mértola. Segui-a, mas fui logo ferida por tão atroz lembrança
que passei o resto do dia lavada em lágrimas. Trouxe-me outra vez para o meu
quarto, atirei-me para cima da cama, e ali fiquei a reflectir na pouca
esperança que tenho de vir um dia a curar me. Tudo o que fazem para me
confortar agrava o meu sofrimento, e nos próprios remédios encontro novas
razões de aflição. Muitas vezes dali te vi passar com um ar que me deslumbrava;
estava naquele balcão no dia fatal em que senti os primeiros sinais da minha
desgraçada paixão. Pareceu-me que pretendias agradar-me, embora não me
conhecesses; convenci-me de que me havias distinguido entre todas aquelas que
estavam comigo; quando paravas imaginava que o fazias intencionalmente para que
melhor te visse, e admirasse o garbo e a destreza com que dominavas o cavalo;
dava comigo assustada, quando o levavas por sítios perigosos; enfim,
interessava-me secretamente por todas as tuas acções, sentia já que não eras de
modo nenhum indiferente, e reclamava para mim tudo quanto fazias. Conheces de
sobra o que se seguiu a tal começo; e, embora não tenha obrigação de te poupar,
não devo falar-te nisso, com receio de te tornar ainda mais culpado, se
possível, do que já és, e ter de me acusar por tantos e inúteis esforços que te
obrigassem a ser-me fiel. Nunca o serás! Se não conseguir vencer a tua
ingratidão à força de amor e renúncia, como haveria de consegui-lo com cartas e
queixumes?
Estou mais que convencida do meu infortúnio; a
injustiça do teu procedimento não me deixa a menor dúvida, e tudo devo recear,
já que me abandonaste.
Serei só eu a sentir o teu encanto? Nenhuns outros
olhos darão por ele? Creio que me não seria desagradável se, de algum modo, os
sentimentos de outras justificassem os meus, e gostaria que todas as mulheres
de França te achassem encantador, mas que nenhuma te amasse e nenhuma te
agradasse. Este desejo é inconcebível e ridículo; sei por experiência que és
incapaz de fidelidade e não precisas de ajuda para me esqueceres, nem a isso seres
levado por nova paixão. Desejaria eu que tivesses um motivo razoável? Seria
mais desgraçada, é certo, mas não serias tão culpado.
Vejo que ficarás em França sem grande prazer, e com
inteira liberdade. Será a fadiga de tão longa viagem, qualquer pequena conveniência,
ou o receio de não corresponderes à minha exaltação que aí te retêm? De mim,
nada receies! Bastar-me-ia ver-te de vez em quando e saber apenas que estávamos
no mesmo lugar. E talvez me iluda; sei lá se não serás mais sensível à
crueldade e à frieza de outra mulher do que foste à minha generosidade. Será
possível que gostes de quem te faça mal? Mas antes de te enleares numa grande
paixão, reflecte bem no horror do meu sofrimento, na incerteza dos meus planos,
na contradição dos meus impulsos, na extravagância das minhas cartas, na minha
confiança, e aflição, e desejos, e ciúmes. Ah, serás um desgraçado! Suplico-te
que tires ao menos proveito do estado em que me encontro, e que assim o meu
sofrimento não seja inútil.
Haverá cinco ou seis meses, fizeste-me uma confidência
bem desagradável: confessaste-me, com a maior franqueza, teres amado uma mulher
na tua terra; se é ela que te impede de regressar, manda-mo dizer sem rodeios,
para que eu deixe de me consumir. Um resto de esperança tem-me ainda de pé,
mas, se a não puder sustentar, prefiro perdê-la por completo e perder-me
também. Envia-me o retrato dela e alguma das suas cartas e conta-me tudo quanto
te diz. Talvez encontre nisso razões para me consolar, ou afligir ainda mais.
Neste estado é que não posso permanecer, e qualquer mudança me será favorável.
Gostaria também de ter o retrato do teu irmão e da tua cunhada. Tudo o que te
diz respeito me enternece, a minha dedicação ao que te pertence é completa; só
o que a mim se refere não me preocupa. Às vezes parece-me que até me sujeitaria
a servir aquela que amas. O tormento que me causas e o teu desprezo
abalaram-me de tal modo, que nem sequer ouso pensar que pudesse vir a ter
ciúmes de ti, com receio de te desagradar; e creio ter feito o pior que podia
fazer ao atrever-me a censurar-te. Também estou convencida de que não devia
impor-te desvairadamente como faço, por vezes, um sentimento que não aprovas.
Há já muito tempo que um oficial espera esta carta.
Tencionava escrevê-la de forma a não te aborrecer, mas é tão incoerente que
será melhor acabá-la. Ai, não está em mim poder fazê-lo! Quando te escrevo é
como se falasse contigo e estivesses, de algum modo, mais perto de mim. A
próxima não será tão longa nem tão importuna; podes abri-la e lê-la, confiado
na minha promessa. Na verdade não devo falar-te de uma paixão que te desagrada,
e não voltarei a falar nela.
Vai fazer um ano, faltam só alguns dias, que me
entreguei inteiramente a ti. A tua paixão parecia-me tão sincera e ardente, que
não poderia imaginar sequer que a minha te viesse a aborrecer, a ponto de te
obrigar a fazer quinhentas léguas, e a expores-te a naufrágios, para te
afastares de mim. Não esperava ser tratada assim por ninguém: devias lembrar-te
do meu pudor, da minha confusão, da minha vergonha, mas tu não te lembras de
nada que possa levar-te contra vontade a amar-me.
O oficial que há-de levar esta carta previne-me, pela
quarta vez, que quer partir. Como ele tem pressa! Abandona, com certeza, alguma
desgraçada neste pais. Adeus. Custa-me mais acabar esta carta d que te custou a
ti deixa-me, talvez para sempre. Adeus. Não me atrevo sequer a chamar-te meu
amor, nem a abandonar-me completamente a tudo o que sinto. Quero-te mil vezes
mais que à minha vida e mil vezes mais do que imagino. Ah, corno eu te amo, e
como tu és cruel! Nunca me escreves; não consigo) deixar de te dizer ainda
isto. Recomeço, e oficial partirá. Se partir, que importa? Escrevo mais para
mim do que para ti; não procuro senão alívio. O tamanho desta carta vai
assustar-te: não a lerás. Que fiz eu para ser tão desgraçada? Porque
envenenaste a minha vida? Porque não nasci noutro país? Adeus. Perdoa-me. Já
não ouso pedir-te que me queiras. Vê ao que me reduziu o meu destino. Adeus.