Em 1669, foram publicadas em Paris, com o título Lettres Portugaises cinco cartas
escritas por uma freira portuguesa a um oficial francês. O seu teor apaixonado,
direto e sensual fizeram delas um enorme
sucesso, embora a maioria dos leitores duvidasse que tivessem sido escritas por
uma mulher por acharem que só um homem poderia sentir daquela maneira.
Hoje persistem poucas dúvidas.
A escritora portuguesa Helena Vasconcelos, no seu livro Humilhação e Glória, afirma que Sóror
Mariana Alcoforado “ensinou a amar uma vastíssima descendência de mulheres e de
(alguns) homens”. “Estou certa que aquelas cartas foram escritas por uma
mulher, Mariana ou qualquer outra", porque - e esta é a
minha parte favorita do livro - "só as mulheres sabem contar sobre o
tremor do corpo".Igualmente, a escritora canadiana Miriam Cyr, no seu livro Letters of a Portuguese Nun, afirma não ter dúvidas de que as cartas foram escritas por Soror Mariana e que ao serem publicadas passaram a ser um dos primeiros românticos “bestsellers” mundiais.
Mariana Vaz Alcoforado (Beja 1640-1723) foi destinada, por
testamento de sua mãe, a ser monja no Convento da Conceição. Aos 27 anos apaixonou-se
por um oficial francês, o Marquês da Chamilli, que lutava nas fileiras portuguesas
durante a Guerra da Independência e cedo a sua cela passou a ser ninho de amor.
O escândalo que isso originou fez com que o oficial francês, temendo pela sua
vida, fugisse para França com a promessa de que a mandaria buscar. A falta de
cumprimento da promessa deu origem às famosas cartas.
Devido à sua extensão iremos publicando as cartas
invidualmente e recorremos à excelente tradução de Eugénio de Andrade.
Primeira carta
Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua
imprevidência. Desgraçado!, foste enganado e enganaste-me com falsas
esperanças. Uma paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que
desespero mortal, só comparável à crueldade da ausência que o causa. Há-de
então este afastamento, para o qual a minha dor, por mais subtil que seja, não
encontrou nome bastante lamentável, privar-me para sempre de me debruçar nuns
olhos onde já vi tanto amor, que despertavam em mim emoções que me enchiam de
alegria, que bastavam para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto há?
Ai!, os meus estão privados da única luz que os alumiava, só lágrimas lhes
restam, e chorar é o único uso que faço deles, desde que soube que te havias
decidido a um afastamento tão insuportável que me matará em pouco tempo.
Parece-me, no entanto, que até ao sofrimento, de que
és a única causa, já vou tendo afeição. Mal te vi a minha vida foi tua, e chego a
ter prazer em sacrificar-ta. Mil vezes ao dia os meus suspiros vão ao teu
encontro, procuram-te por toda a parte e, em troca de tanto
desassossego, só me trazem sinais da minha má fortuna, que cruelmente não me
consente qualquer engano e me diz a todo o momento: Cessa, pobre Mariana, cessa
de te mortificar em vão, e de procurar um amante que não voltarás a ver, que
atravessou mares para te fugir, que está em França rodeado de prazeres, que não
pensa um só instante nas tuas mágoas, que dispensa todo este arrebatamento e
nem sequer sabe agradecer-to. Mas não, não me resolvo, a pensar tão mal de ti e
estou por demais empenhada em te justificar. Nem quero imaginar que me
esqueceste. Não sou já bem desgraçada sem o tormento de falsas suspeitas? E
porque hei-de eu procurar esquecer todo o desvelo com que me manifestavas o teu
amor? Tão deslumbrada fiquei com os teus cuidados, que bem ingrata
seria se não te quisesse com desvario igual ao que me levava a minha paixão,
quando me davas provas da tua.
Como é possível que a lembrança de momentos tão belos
se tenha tornado tão cruel? E que, contra a sua natureza, sirva agora só para
me torturar o coração? Ai!, a tua última carta reduziu-o a um estado bem
singular: bateu de tal forma que parecia querer fugir-me para te ir procurar.
Fiquei tão prostrada de comoção que durante mais de três horas todos os meus
sentidos me abandonaram: recusava uma vida que tenho de perder por ti, já que
para ti a não posso guardar. Enfim, voltei, contra vontade, a ver a luz:
agradava-me sentir que morria de amor, e, além do mais, era um alívio não
voltar a ser posta em frente do meu coração despedaçado pela dor da tua
ausência.
Depois deste acidente tenho padecido muito, mas como
poderei deixar de sofrer enquanto não te vir? Suporto contudo o meu mal sem me
queixar, porque me vem de ti. É então isto que me dás em troca de tanto amor?
Mas não importa, estou resolvida a adorar-te toda a vida e a não ver seja quem
for, e asseguro-te que seria melhor para ti não amares mais ninguém. Poderias
contentar te com uma paixão menos ardente que a minha? Talvez encontrasses mais
beleza (houve um tempo, no entanto, em que me dizias que eu era muito bonita),
mas não encontrarias nunca tanto amor, e tudo o mais não é nada.
Não enchas as tuas cartas de coisas inúteis, nem me
voltes a pedir que me lembre de ti. Eu não te posso esquecer, e não esqueço
também a esperança que me deste de vires passar algum tempo comigo. Ai!, porque
não queres passar a vida inteira ao pé de mim? Se me fosse possível sair deste
malfadado convento, não esperaria em Portugal pelo cumprimento da tua promessa:
iria eu, sem guardar nenhuma conveniência, procurar-te, e seguir te, e amar-te
em toda a parte. Não me atrevo a acreditar que isso possa acontecer; tal
esperança por certo me daria algum consolo, mas não quero alimentá-la, pois só
à minha dor me devo entregar. Porém, quando meu irmão me permitiu que te
escrevesse, confesso que surpreendi em mim um alvoroço de alegria, que
suspendeu por momentos o desespero em que vivo. Suplico-te que me digas porque
teimaste em me desvairar assim, sabendo, como sabias, que terminavas por me
abandonar? Porque te empenhaste tanto em me desgraçar? Porque não me deixaste
em sossego no meu convento? Em que é que te ofendi? Mas perdoa-me; não te culpo
de nada. Não me encontro em estado de pensar em vingança, e acuso somente o
rigor do meu destino. Ao separar-nos, julgo que nos fez o mais temível dos
males, embora não possa afastar o meu coração do teu; o amor, bem mais forte,
uniu-os para toda a vida. E tu, se tens algum interesse por mim, escreve-me
amiúde. Bem mereço o cuidado de me falares do teu coração e da tua vida; e
sobretudo vem ver-me.
Adeus. Não posso separar-me deste papel que irá ter às
tuas mãos. Quem me dera a mesma sorte! Ai, que loucura a minha! Sei bem que
isso não é possível! Adeus; não posso mais. Adeus. Ama-me sempre, e faz-me
sofrer mais ainda.